quarta-feira, 4 de agosto de 2010

Solidão Urbana por Contardo Calligaris

1. Há os que recusam convites porque, “de qualquer forma”, já sabem que não vai ser o grande amor;
2. Há os que não querem perder tempo com conhecidos, só “com grandes amigos mesmo”;
3. Há os que recusam convites porque, se for o grande amor, vai ser o fim de seus hábitos solitários consolidados;
4. Há os que recusam convites porque, se o grande amor acontecer, vão ter que parar de se preparar para o grande amor futuro;
5. Há os que recusam convites porque, cá entre nós, é muito trabalho;
6. O anseio por algo imediato, grandioso radical e impossível produz uma verdadeira fobia de qualquer possível;
7. Há os que querem aventura, mas têm medo do desconhecido;
8. Alguns, à noite, fazem compras na farmácia só para falar com alguém; se alguém lhes diz uma palavra, calam-se indignados;
9. Há os que procuram só sexo, mas recusam qualquer outro que queira “só isso”;
10. Há os que ficam petrificados, temerosos por seu relógio, quando alguém lhes pergunta a hora. Eles têm razão;
11. Há os que correm nas academias para ter a ilusão de estar correndo na companhia do cara da esteira ao lado;
12. Há os que correm nos parques e, quando se cruzam, cumprimentam-se com um sorriso, mas não parariam para conversar;
13. Há os que dizem que malham para ficar mais bonitos e encontrar alguém com quem namorar e passar as noites;
14. Entre esses últimos, há muitos que nunca passam à noite com alguém porque eles devem levantar cedo para malhar;
15. Há os que sofrem de insônia por solidão; dizem que, para dormir, eles precisariam encostar em outro corpo;
16. Há os que, de madrugada, olham para a cidade com o orgulho de serem as sentinelas do sono de todos os outros;
17. Há os que passam a noite de seriado em seriado; a luminosidade e a voz da TV lhes fazem companhia;
18. Há os que só pegam no sono quando o dia e os passarinhos garantem que as ruas tornarão a se povoar;
19. E há os que sofrem de insônia por solidão enquanto, em sua cama, há um outro que os espera (roncando ou não);
20. Há os que pegam emprestado um cachorro, que lhes serve de pretexto para papear com desconhecidos no parque;
21. Crianças pequenas também são pretexto para papear; passear com elas é um jeito de fazer novos amigos;
22. Acontece que um tio pegue crianças emprestadas para estimular papo-bebê com desconhecidos nos parques;
23.  A fofura de crianças e cachorros pode servir para esconder um desejo do qual alguém se envergonha ;
24. Muitos se envergonham de seu desejo, mesmo se esse desejo não tem nada de vergonhoso;
25. Há os que não manifestam seu desejo por medo de perder a face, se forem rechaçados;
26. Há os que escondem seu desejo porque acham que ele é único, bizarro ou doentio;
27. Há os que escondem qualquer desejo porque o fato de desejar lhes parece uma fraqueza;
28. Alguns andam pelas ruas abarrotadas, trabalham em imensos escritórios e perguntam: como faço para encontrar alguém? ;
29. Alguns, cansados de ficar sozinhos, querem uma relação, mas receiam que a relação use muito de “seu” tempo;
30. Há os que perguntam: se eu estiver com alguém, será que terei ainda tempo para mim?;
31. Alguns procuram, na foto pornográfica, a confirmação de que “aquilo”, às vezes, acontece mesmo;
32. Há os que vão para a zona só para contemplar os clientes e as prostitutas: querem certificar-se de que sexo existe;
33. Alguns vão para a zona para respirar fundo, como se fosse o último lugar onde o desejo ainda paira no ar;
34. Alguns ridiculizam e menosprezam as relações virtuais, mas enlouquecem de ciúme quando seu par liga o computador;
35. Alguns casais vivem juntos, transam e conversam, mas, para falar do que mais importa, correspondem-se por e-mail;
36. Há os que, na net, declaram paixões e sentimentos que não declarariam diante de um outro em carne e osso;
37. Se alguém só consegue dizer seu desejo teclando, isso significa que sua vida é “apenas” virtual?;
38. Há os que amam a cidade porque, nela, quase tudo é possível; curiosamente, muitos deles se permitem muito pouco;
39. Para alguns, todos os encontros (amorosos, culturais etc.) precisam ser possíveis, para melhor serem evitados;
40. Às vezes, a cidade é como uma balada: um jeito de ser rodeado por muitos sem ter que se relacionar com ninguém;
41. Há crianças que pegam no sono só se há luz e vozes de adultos na sala; não é o mesmo para os moradores da cidade?;
42. Muitos moradores da cidade só dormem com a televisão ligada, mesmo quando “sossegam” numa pousada no campo;
43. Prazer. No fim de tarde, no escuro que avança, ver as janelas pipocar pelas fachadas;
44. Prazer. No frio, caminhar quando todos se apressam para voltar para casa;
45. Prazer. Na chuva e no frio, passear pelas ruas das quais todos já fugiram;
46. Alguns denunciam a frivolidade urbana, mas exibem sua denúncia pelas ruas, como se fosse um acessório de marca;
47. Outros denunciam a frivolidade urbana e se trancam em casa; ostentam a indignação que dá um sentido à sua vida;
48. Na vida urbana, frivolidade é o exibicionismo dos outros – o que compete com o nosso;
49. Em 2007, Christina Copeman foi encontrada na sua casa do Brooklyn, morta há um ano. Indiferença urbana? Nem tanto…;
50. Muitos vêm para a cidade grande porque preferem lidar com conhecidos, amigos e amores do que com a família;
51. A taxa de suicídio é menor nas cidades grandes. Talvez amores, amigos e conhecidos deprimam menos do que as famílias.

Contardo Calligaris

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